IHU Notícias, 29 de outubro de 2014
O povo
brasileiro não existe
"Desde
as manifestações
de 2013 o discurso da união nacional havia entrado em colapso. Quando massas
foram às ruas, descobrimos que alguns gritavam pelo fim da PM enquanto outros queriam a expulsão de médicos
cubanos do país", escreve Vladimir Safatle, professor de Filosofia, em
artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo,
28-10-2014.
Eis
o artigo.
Fechadas
as urnas e proclamado o resultado
das últimas eleições, as primeiras palavras foram em direção à reconstrução da união
nacional. Afinal, esta eleição teria levado o país a um ponto perigoso no qual parecem
aflorar inimizades, preconceitos e outras coisas que gostaríamos de acreditar
ultrapassadas. Vamos então esquecer um pouco tudo isso, voltar à vida normal,
reintegrar os expulsos do Facebook. Mas, e se
isso não for mais possível?
Desde as
manifestações de 2013 o discurso da união nacional havia entrado em colapso.
Quando massas foram às ruas, descobrimos que alguns gritavam pelo fim da PM enquanto outros queriam a expulsão de médicos
cubanos do país. Daí as leituras díspares sobre o sentido ideológico daquela
explosão de descontentamento: de classe média golpista nas ruas à situação
pré-revolucionária. No entanto, talvez lá havíamos simplesmente descoberto que
não haveria mais união, nem mesmo o silêncio complacente de sempre. Placas
tectônicas se moveram.
O Brasil que conhecemos até agora acabou. Os
amigos perdidos talvez não voltem mais. Por isso, arriscaria dizer que o maior
saldo dessas eleições foi mostrar que não somos algo parecido a um povo dotado
de identidade coletiva. Não há nada, absolutamente nada que me una a pessoas
que tomam a avenida Faria Lima para gritar:
"Viva a PM". Apenas ocupamos o mesmo
espaço e tentamos politizar nosso desencontro absoluto, mas não fazemos parte
de identidade coletiva alguma. Por isso, nosso encontro político sempre será
violento.
Esta
divisão não é apenas expressão de um conflito de classe. Desde que Lula ganhou sua primeira eleição, o PSDB tem, em média, 40% dos votos, chegando agora a
48%. Não há 40% de classe média no Brasil. A
classe média e a classe pobre sempre estiveram ideologicamente divididas, com
algo como um terço de seus eleitores oscilando entre dois polos.
Creio que
é importante dizer isso porque as reconciliações nacionais na história
brasileira foram sempre reconciliações extorquidas, na qual os mais vulneráveis
são obrigados a engolir discursos conciliatórios enquanto as desigualdades e os comportamentos medievais de
certas parcelas da população continuam a circular sem culpa. Não há razão
alguma para continuar esta compulsão de repetição.
Seria bom
para o país que os atores políticos estivessem à altura deste novo cenário.
Concordo com a tese do Safatle, porém
discordo da generalização que está induzida no título da matéria.
Para mim o povo brasileiro, na sua
índole mais intrínseca e fundamental, continua sendo aquela descrita por tantos
pensadores nacionais, cuja síntese eu considero que foi brilhantemente descrita
por Darci Ribeiro.
Em pobres palavras, destaco a admiração
e a consideração que têm os brasileiros no mundo todo, tanto em razão das
fortes impressões que causamos em
diversas instâncias e circunstâncias, como também as percepções daqueles que
nos visitam. Vide, por exemplo, o que aconteceu na última Copa do Mundo.
Entendo que esses fundamentos e esses
valores não desapareceram nem podem desaparecer. Neste momento apenas estão
sendo soterrados por imensas e nojentas placas tectônicas de desconstrução induzida
da nacionalidade brasileira simplesmente porque isso convém aos processos de
alienação, dominação e exploração que assolam os países pobres e também os não
pobres como o Brasil. Infelizmente a maioria do nosso povo, pela falta de
formação e informação adequadas, não consegue perceber isso.
Assim, o processo de desconstrução está
em marcha acelerada a começar pela língua, hábitos, costumes, modismos, etc. Veja
a linguagem predominante nos jovens hoje em dia, vá a qualquer “shopping
center” (“centro de compras/vendas”) e conte quantas lojas têm nome em
português, veja quantas manifestações de
“halloween” – uma cultura totalmente alienígena, desconectada de nossos
costumes - estão acontecendo neste final
de outubro. E assim por diante.
Em suma, a desconstrução da nossa
brasilidade está posta de um modo brutal, porém ainda espero e creio que um dia
consigamos detê-la. O que não será sem muita luta.
Para concluir, devo ir a Sartre quando
disse que não importa aquilo que fazem conosco, mas sim aquilo que permitimos que façam conosco.
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